X-Men: uma analogia ao preconceito e à intolerância

Nas histórias em quadrinho dos “X-men”, os protagonistas são um grupo de mutantes, que nascem com pequenas diferenças genéticas em relação aos homo sapiens. Embora muitas dessas mutações lhes tragam vantagens evolutivas, esses indivíduos são tratados como doentes e perigosos por seus diferentes, gerando uma espécie de caçada a essa minoria.

“Rótulos arbitrários são mais importantes do que a maneira como levamos a nossa vida? O que supostamente somos é mais importante do que o que realmente somos?”, questionou muito sabiamente Scott Summers, o famigerado Ciclope, durante um debate contra Willian Stryker (um pastor que prega em seu programa de tv o extermínio dos mutantes), transmitido pela televisão, sobre a questão a respeito do preconceito contra os mutantes. Isso acontece na HQ Deus Ama, O Homem Mata, uma das edições responsáveis por deixar explícito que o principal inimigo dos X-Men, em meio a tantos vilões e desafios propriamente ditos, é o preconceito. Sendo assim, por trás de todo o universo fantástico com direito a poderes e muita ação, há questões verdadeiramente mais profundas do que se pensa.

Escrita por Chris Claremont e Brent Anderson, a HQ Deus Ama, O Homem Mata gira em torno do poder que a palavra tem e como ela pode influenciar toda uma população. Acontece que Stryker lidera um grupo de pessoas que atende pelo nome de Purificadores, cuja premissa é eliminar a raça mutante do país. Isso porque Stryker acredita que os mutantes são criaturas do Diabo, enquanto os humanos foram criados por Deus.

De acordo com o historiador e sociólogo Eduardo Molina, dono do canal Geek História, no YouTube, onde relaciona momentos da história da humanidade às HQs, se fizermos um recorte histórico, temos em 1954 a Suprema Corte Americana se posicionando com referência à separação entre negros e brancos nas instituições de ensino (High School) alegando inconstitucionalidade nesse ato. A população americana ignorou o fato e continuou com o racismo e o segregacionismo, inclusive, em espaços públicos. Segundo o professor universitário, em 1955, o caso Rosa Parks estourou como uma bomba nos Estados Unidos, uma negra que se recusou a ceder seu lugar no ônibus para um branco e foi presa por isso. Esses eventos levam ao início da década de 60 com o Movimento dos Direitos Civis dos Negros nos Estados Unidos, encabeçado por Martin Luther King Jr. e Malcolm X.

Eduardo conta que as principais inspirações para a criação dos personagens do professor Xavier e Magneto foram King e Malcom X. Xavier é Martin Luther King, em sua postura, seu discurso, em seus sonhos de uma vivência pacífica entre humanos e mutantes, inclusive, tendo falas muito semelhantes ao de King em várias histórias. Magneto é Malcon X, mais radical em sua forma de lidar com a segregação, defendendo que esse separatismo seria benéfico e que a violência era um recurso aceitável para a autoproteção.

“Essa história é considerada por muitos como uma das melhores histórias dos X-Men. Chris Claremont e Brent Anderson ao roteirizar e ilustrar a graphic novel trazem elementos fundamentais para a compreensão não apenas do contexto histórico, mas, também, sociopolítico dos Estados Unidades em 1982 e que permanecem os mesmos até os dias de hoje”, aponta o sociólogo e historiador.

O epecialista observa que Stan Lee e Jack Kirby criaram os X-Men para levar esse debate para a sociedade através da metáfora de seus personagens, seres que sofreram uma evolução genética (o gene X) e adquiriram poderes em decorrência disso. Os mutantes sofrem a mesma segregação, são perseguidos, caçados e até mesmo mortos. Cada personagem criado é uma crítica a sociedade racista estadunidense.

Eduardo aproveita para destacar uma frase do próprio Stan Lee, em uma entrevista em 2013: “Eu queria que eles fossem diversos. O principal objetivo dos X-Men foi tentar ser uma história anti-preconceito, mostrar que o bem e o mal existem dentro da mesma pessoa”, e acrescenta que a Marvel, a partir da década de 60, “humanizou” seus personagens para criar um diálogo com a sociedade e mostrar através de suas histórias que não podem existir espaços para o ódio e a intolerância.

Mutantes: uma metáfora para a população LGBTQIA+

“Nas histórias podemos perceber nitidamente questões racistas, mas, não apenas. Os X-Men também abordam questões homossexuais, feministas. Por exemplo, no filme de 2006 desenvolvem uma vacina para “curar” os mutantes, como se houvesse algo errado em serem o que são. Quantas vezes já ouvimos sobre projetos de branqueamento da população? Extermínio de “raças”? Cura gay? A temática dos X-Men segue muito atual”, aponta Eduardo Molina.

O filme a que se refere é X-Men 3: O Confronto Final, baseado no arco A Saga da Fênix Negra. Na trama, em paralelo com a ascensão da Fênix gira em torno de um mutante cujo poder é justamente neutralizar os poderes dos outros mutantes, o que leva os humanos a interná-lo em um laboratório para se apropriar de seu gene X e transformá-lo no que acabam chamando de “A cura”, já que eles definem a mutação como uma doença.

Durante o longa, inclusive, há um marcante diálogo em que a notícia sobre a tal cura aparece na televisão. Tempestade, Wolverine e Xavier estão na sala, e Vampira entra, empolgada com a notícia: “É verdade? Eles podem nos curar?”, ao que o professor responde: “Sim, aparentemente, é verdade”, mas acaba sendo interrompido pela Tempestade, que diz: “Não, professor. Não podem nos curar. Quer saber por quê? Porque não há nada a curar. Não há nada de errado com você. Com nenhum de nós, na verdade”.

É perfeitamente possível relacionar isso com um caso de 2017, quando a “cura gay” foi um assunto que entrou em pauta, uma vez que retornou para a Câmara dos Deputados. Na época, depois de uma grande discussão sobre o assunto que acabou levado ao arquivamento, voltou à tona na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) o PL 4931/2016 — que acaba com a punição do profissional de saúde mental que tratar o paciente com “transtorno de orientação sexual”.

“A sociedade atual resgatou um discurso conservador e tradicional, usando a religião como um pano de fundo moralizante e fundamentalista. Nessa história, o reverendo Stryker conduz uma cruzada contra os mutantes porque eles eram obras diabólicas usadas para atormentar os homens, hoje, por exemplo, temos esse mesmo discurso para com a comunidade LGBTQIA+ ou para com aqueles que não se enquadram no “padrão” moral estabelecido por eles”, destaca o historiador e sociólogo.

No entanto, X-Men não apenas pode ser visto como uma metáfora para a homossexualidade, como também aborda abertamente o tema, como no caso da personagem Estrela Polar (North Star), um dos membros mais antigos do grupo, que assumiu que era gay na década de 1990. A Marvel fez isso com naturalidade. Apesar dos preconceitos, das ofensas recebidas, o personagem se mantém correto em suas atitudes, mostrando sua força, não abaixando a cabeça para ninguém. Tivemos também, em 2013, na edição 10 de X-Treme X-Men (um universo alternativo), um Wolverine, símbolo da virilidade e da masculinidade, protagonizando um beijo gay com o personagem Hércules. Em setembro, o Canaltech fez uma matéria especial sobre a minoria representada nas HQs.

Por sua vez, é possível destacar uma cena do filme X-Men 2, em que Bobby (o Homem de Gelo), conversa com seus pais e conta que ele era mutante e a resposta dos pais foi: “você já tentou não ser um mutante?”. Pergunta comum entre pais que descobrem a homossexualidade dos filhos.

O sociólogo conclui que ainda existe muito preconceito, embora hoje se tenha mais acesso à informação e se discuta mais abertamente essas questões, principalmente através dos vários movimentos que ganharam força nos últimos anos: “Ainda vejo que muitos dos que acompanham os X-Men são capazes de defender os mutantes, mas, incapazes de aceitar um negro, mulher ou um algum membro da comunidade LGBTQIAP+ em seu convívio social ou até mesmo familiar”.

Por Nathan Vieira
30 de Dezembro de 2019

Disponível em: https://canaltech.com.br/quadrinhos/x-men-uma-metafora-para-o-preconceito-e-para-a-intolerancia-158481/. Acesso em 17 de agosto de 2020.